DWM #563: Nove Vidas Parte Um – “Foi uma coisa alegre de ser feita”

Christopher Eccleston finalmente voltou a Doctor Who. Em sua primeira entrevista à DWM desde 2014, ele conta a Graham Kibble-White sobre as armadilhas e os triunfos que vêm junto com o papel. 

Há esse pedaço em Rose (2005) em que a personagem-título de Billie Piper tropeça para dentro da TARDIS e tenta assimilar a impossibilidade daquilo tudo. 

“O lado de dentro é maior que o de fora?” ela pergunta, buscando respostas. 

“Sim” responde o Doutor.

“É alien?” ela continua

“Yep.”

“Você é alienígena?”

“Sim”

Conversando com Christopher Eccleston 16 anos depois de sua estreia como o Nono Doutor, há momentos em que ele dá exatamente as mesmas afirmações exatamente do mesmo jeito. Como vamos descobrir, tanto ele quanto sua versão do Doutor preferem ser diretos. 

“Eu não gosto de ironia”, Chris diz em um ponto da nossa conversa. “Eu não frequentei Oxbridge. O Doutor tem essa reação de força total, sincera e instintiva à… à vida.”

Chris está de volta a Doctor Who para uma série de aventuras na Big Finish. Em sua franqueza, digamos assim, antes da entrevista à Doctor Who Magazine, foi deixado bem claro que ele queria que a entrevista fosse focada em sua nova empreitada. Quando foi perguntado mais tarde se ele tinha algum interesse em reviver partes de seu tempo na TV em áudio, ele respondeu: “Eu não quero revisitar tudo aquilo. Aqueles 13 episódios permanecem, para o bem ou para o mal.”

São uma da tarde da terça-feira, 23 de fevereiro, e ele conversa conosco pelo telefone, durante uma pausa na sessão de gravação. Ele está viajando para o estúdio da Big Finish pelas últimas semanas, trabalhando quase sempre apenas com o engenheiro Wilfredo Acosta, em razão das restrições da COVID. 

“Um dos desafios para todos nós gravando em lockdown é que nós [atores] não nos encontramos”, ele diz. 

“Então, não há como socializar na sala verde durante o almoço, o que cria um relacionamento quando você relaxa com outras pessoas. Infelizmente, isso não tem acontecido. Então,  nós estamos fazendo isso ao longo do caminho.”

“As pessoas estão gravando debaixo de escadas, nos armários das vassouras. E eu estou no estúdio. Mas nós estamos tentando fazer disso algo positivo. Eu tenho uma forte relação de trabalho com Wilfredo, por exemplo. Quer dizer, a ligação entre nós dois é forte porque um é tudo o que o outro tem. Nós nos fazemos companhia e nos divertimos. Eu o deixo maluco, porque eu sou um ator muito físico. E toda hora ele tem que ajustar o meu microfone e pedir para que eu fique parado. Mas fora isso, é solitário. E eu espero que todos estejamos juntos.”

Sendo seu Doutor geralmente descrito como solitário, alguém pode imaginar se essa experiência deu a Chris um novo entendimento. Ele ri. “Eu estava dizendo a Wilfredo hoje ‘normalmente todos esses atores estariam juntos aqui’. Ele disse ‘sim’, e disse isso com um sorriso triste.”

Apesar disso, as histórias em que Chris está trabalhando “até agora estão bem longe dos elementos mais sombrios do Nono Doutor”. É provavelmente uma boa jogada. “Todo mundo já se sente mal o suficiente com essa pandemia. Eu estou realmente gostando do toque de leveza que o Doutor está trazendo.”

“Eu acho, provavelmente, que eu sou ligeiramente conhecido pela seriedade – meu Doutor carregava a culpa do sobrevivente. Aquilo era essencial para a primeira temporada, e foi por isso que eles precisavam de mim, porque eu poderia trazer isso… Todos os atores antes de mim também poderiam ter trazido isso, mas é que Doctor Who esteve quieto por tanto tempo, o que a série precisava [quando voltou à TV] era um pouco de peso e credibilidade, de algum modo. Então isso foi útil.”

“No momento, o Doutor está livre dessa angústia, e ele é questionador e entusiasmado e engraçado e amoroso. Mas quem sabe se mais tarde nós vamos dar um tom mais sombrio? É uma possibilidade.”

Na sincera biografia de Chris de 2019, I Love The Bones Of You, nós temos uma noção de como ele vê Doctor Who em dois capítulos, nos quais ele assiste Rose e Dalek com seus dois filhos, Albert e Esme, nascidos em 2012 e 2013. “O Doutor fica empolgado com suas aventuras e mais estimulado do que assustado”, ele conta aos filhos. “Ele quer descobrir quem são os aliens e de onde eles vêm.” 

É um belo resumo. Albert acrescenta mais um: “seu cabelo parece irlandês.”

Embora parecesse estar bem fora da órbita de Doctor Who depois de deixar a série – pelo menos até 2018, quando fez sua primeira aparição em convenções – fica óbvio agora que Chris sempre esteve entusiasmado pelo papel. “Eu sempre acreditei que as pessoas que assistem ao programa sabem quem eu sou, o que significou para mim e o quanto eu me dei ao papel”, ele diz.

Sobre retornar ao personagem diariamente, ele diz: “É bom interpretar um herói. É bom interpretar alguém que tenha todas as respostas. É bom interpretar um entusiasta. E é bom interpretar alguém que está na linha de frente e é confiante. E caloroso! É um prazer interpretá-lo, como todo ator que já fez o papel pode dizer a você. Esse é um herói que não se leva tão à sério, e que é cheio de amor. É um prazer fazê-lo.”

 “Ele é muito correto, o Doutor, não é? Ele não se deixa manipular. Ele diz exatamente o que lhe dá na telha. E eu acho que os mais inteligentes dos seres humanos – ou macacos, como ele geralmente se refere a eles – sempre respondem bem a isso, especialmente as mulheres. Ele tem uma inclinação para o feminino, o Doutor, como demonstram suas companheiras ao longo dos anos – a inteligência emocional delas. Ele é fã de inteligência emocional, e perdão e da humanidade dos humanos. E eu acho que isso fica bem claro em todas as relações ao longo das maravilhosas aventuras que nós estamos gravando no momento.”

Foi em uma convenção de Doctor Who em Los Angeles que o diretor-geral da Big Finish, Jason Haigh-Ellery, conseguiu persuadir Chris a voltar. 

“Eu fui chamado em algumas ocasiões, mas não era a hora certa por conta de onde eu me encontrava na minha vida pessoal e na minha vida profissional. E então surgiu a hora certa. Nós conversamos sobre isso na convenção, e então eles entraram em contato com Sara Elman, que é a minha agente de voz. Eu dei uma olhada nos roteiros, e fiquei realmente encorajado com a qualidade deles. E aqui estamos.”

Então, o que fez de agora a hora certa?

“O que convence o pedreiro a fazer uma parede? O que convence um encanador a arrumar um cano? O que o convence a fazer seu trabalho? Primeiro de tudo, quer dizer, não é a coisa mais educada a se falar – e porque nós somos ingleses nós não falamos sobre esses assuntos – mas eu sou um ator, e o que paga a minha hipoteca e a pensão dos meus filhos é atuar. É um trabalho pago. É o que eu faço para viver. Depois, como eu sempre disse, eu tenho um grande amor pelo personagem. Eu sempre disse isso.”

Para qualquer ator que tenha vivido o Doutor no século XXI há sempre uma pergunta constante: quando você vai para a Big Finish? Estaria essa pergunta também rondando Chris?

“Bem, para ser honesto, eu não ouço os rumores. Eu não sou uma pessoa envolvida nisso tudo. Mas eu gosto bastante de rádio, e eu faço audiolivros, e eu tenho bastante satisfação criativa com isso. E com isso eu senti que poderia fazer algo com um personagem que eu interpretei num formato visual. Eu poderia explorá-lo tecnicamente, de um modo vocal.”

A conversa muda para os roteiros – e a mecânica do trabalho de Chris. Ele diz que não é o tipo de ator que faz anotações nos roteiros: “Não, meu método é aprenda suas falas, não tropece nos móveis e não se atrase. E tenha modos.

“Eu dou muita importância à primeira leitura de tudo. Eu acho que, na atuação, instinto é tudo. Não é uma busca acadêmica. Você pode se preparar de mais, mas também pode se preparar de menos. Então, o que eu faço com os roteiros é, eu os leio quantas vezes forem necessárias e então eu apareço e encontro a minha performance na dos outros atores. É algo muito importante para mim em filmes, televisão ou teatro… tudo o que você faz diz respeito à comunicação entre você e os outros atores.

“Claro que, em lockdown, existem restrições a isso. Mas você tem que fazer o melhor disso. Hoje, diferentemente, nós temos outro ator no estúdio. Geralmente somos só eu e o magnífico Wilfredo – e todos os outros estão ao telefone, inclusive os diretores. Nós temos que nos conectar desse modo, porque eu acho que atuar é primordialmente sobre ouvir e reagir, e não se impor – não é atuar no vácuo.”

A abordagem “aqui e agora” de Chris combina com seu Doutor. “Ele está eternamente no agora. Viagem no tempo é… esse é o elemento. E em uma das histórias que nós estamos gravando no momento, o Brigadeiro [interpretado por Jon Culshaw] diz a ele. ‘Você se lembra de ter vindo à minha festa de aposentadoria e nós acabamos parando em Gallifrey?’ [referência a The Five Doctors, de 1983]. E ele diz, ‘não, eu não lembro’. Ele está sempre seguindo adiante.

“Eu acho que isso é alimentado por esse elemento multiforme dele – ele se torna Peter Capaldi e depois se torna Jodie Whittaker. Ele pode se tornar Jon Pertwee. Mas isso tem que ser instintivo e novo, especialmente quando você faz vários episódios em que o Doutor faz essencialmente as mesmas coisas. Então você tem que achar algo novo no agora. E na sua abordagem.”

Isso lembra a afirmação de Tom Baker de que o Doutor “não é um papel”, no sentido de que o personagem nunca tem um desenvolvimento. 

“Sim”, ele responde – daquele jeito. “Eu acho que há uma grande sabedoria em Tom Baker. Quando eu fui escolhido como Doutor, perguntaram a ele ‘o que você do Christopher Eccleston?’. E ele respondeu, ‘quem é Christopher Eccleston?’, o que foi a minha reação predileta naquela época. Eu acho que ele é o maior. Ele é o maior. E você vê isso em todos os seus episódios. Ele está sempre no agora e sempre com algo novo.”

Mas enquanto seu predecessor pode ser duro no que diz respeito aos roteiros, Chris é mais o defensor dos roteiristas. “Eu confio nos escritores, é o que eu tenho feito por toda a minha carreira”, ele confirma. “Para mim, está tudo na escrita. Então, eu confio nisso. Eu honro os roteiristas, eu os protejo.

“Eu sou um ator mediano que roteiristas como Jimmy McGovern, Peter Bowker e Peter Flannery fazem parecer bom. Como foi que disse Alan Rickman? Atores não ganham prêmios, bons papéis ganham prêmios. E os bons papéis são criados por escritores. Por conta do culto às celebridades e tudo o mais, nós importamos da América a ideia de que atores são semideuses. Isso significa que eles são colocados em um patamar mais elevado que os roteiristas, e não é assim comigo. O roteirista é a pessoa mais importante em um projeto. Sem um roteirista, nenhum de nós trabalha. Você e eu não estaríamos tendo essa conversa.”

Na Big Finish ele encontrou uma produtora que é focada unicamente nas palavras. “O processo deles é impecável. A qualidade da escrita e o jeito que eles fazem os dramas, mesmo sob lockdown – é novo, é honesto, é irreverente. É profissional.

“Escrever algo como uma aventura de Doctor Who é um grande desafio, porque você tem que introduzir uma grande quantidade de ciência e tecnologia. Você tem que fazer isso com leveza – você tem que mover a narrativa com elegância, graça e facilidade. Você tem que referenciar o cânon. Você tem que apresentar novos personagens. Há uma grande necessidade de economia. É muito mais fácil escrever para a TV do que para áudio – muito, muito mais fácil. E eu ficaria espantado se algumas das aventuras que eu gravei até agora não forem adaptadas para o meio visual. Eu estou radiante com a força da escrita.”

Já é lugar comum falar que a ficção científica pode ser usada como um cavalo de Troia para a discussão de assuntos difíceis – assuntos que você não esperaria ver na BBC One na hora do chá, antes da Dança dos Famosos. Será que Chris corrobora essa teoria?

“Sim. Corroboro. Cavalos de Troia… Jimmy McGovern, por exemplo, usava Cracker [drama da ITV] como um cavalo de Troia para transmitir suas opiniões sobre a incrível injustiça aconteceu em Hillsborough. Então sim. E claro, para mim, Doctor Who é bastante atrativo porque você pode escamotear assuntos para apresentá-los às crianças e plantar a semente. É muito útil. E claro, não fica parecendo palestra, que é uma coisa que os grandes roteiristas conseguem fazer. Se você quer dar a sua opinião, faça isso de forma gentil e sutil. A mensagem em Doctor Who é sempre positiva. A mensagem é sempre inclua todas as formas de vida. E não julgue. É fabuloso.”

Chris, porém, diz que não procura necessariamente por questões de realismo social quando está considerando os projetos. “Você faz um roteiro sobre uma fábrica de plásticos, e se for bem escrita, haverá uma questão. Você pode escrever sobre qualquer coisa, de verdade. Qualquer coisa. Mas eu… sabe, com Doctor Who eu não estou tentando fazer o que Ken Loach faz. Não.”

Um aparte. Pulemos para o fim da nossa conversa e o chefe de marketing e publicidade da Big Finish, Steve Berry, entra na linha. Ele quer checar se todo mundo está feliz – e esclarecer alguns comentários. (Ele confirma com Chris que foi na Gallifrey One que ele teve a conversa fundamental com Jason Haigh-Ellery). E então… ele não consegue se segurar. Steve diz a Chris que, nos anos 1970, houve sim uma história de Doctor Who que se passava numa fábrica de plásticos. Chris dá risada da quantidade de coisas absurdas que o programa abrange. Mais tarde, trocamos mensagens com Steve para falar que nós nunca ouvimos algo tão estranho quanto ele fazendo fansplainnig de Spearhead From Space para Christopher Eccleston – e se nós poderíamos colocar na matéria? “Ha ha”, ele respondeu. “Você quis dizer Terror Of The Autons, mas tudo bem…”

Como esse interlúdio mostra, a Big Finish é uma empresa que realmente conhece Doctor Who. Isso quer dizer que essas novas produções têm um um pulso firme sobre as especificidades do Nono Doutor. Chris diz que está completamente satisfeito com o modo pelo qual eles capturaram suas características, mas complementa: “Eu nunca fui um ator que anota [escreve notas] o roteirista. Nunca. Se há um roteiro que eu não gosto, eu simplesmente não participo.

“Eu estudei nos anos 1970 e 80 absorvendo o altíssimo padrão de escrita para a TV britânica. Depois eu fui para a escola de artes cênicas [London Central Scholl of Speech and Drama] e eu treinei a mim mesmo com Shakespeare e Ibsen e Strindberg.  O ponto central nisso tudo é honrar o roteirista, proteger o roteirista. O que eu vejo nos escritores é que, ao contrário de alguns diretores, eles têm grande respeito pela inteligência do público. Eles nunca escrevem de menos, eles sempre escrevem a mais. 

“Eu sinto que, dentro do esquema da Big Finish, há um grande espaço para conversa. Há a estrutura central, a equipe, e eles agregam os roteiristas. Então, há uma consistência na escrita do Nono Doutor, mas também há algo que muda de episódio para episódio onde ele é moldado de algum modo por aquele escritor específico, e isso o mantém novo. Esse elemento mutável na personalidade é adorável.”

E há, ainda, a intrigante contradição em seu Doutor – ele é direto e, ao mesmo tempo, imperscrutável. “Eu creio que seja essencial que o Doutor permaneça parcialmente desconhecido, o que é facilitado pelo fato de que ele pode mudar sua aparência física. Então há essa familiaridade para os fãs, de que ele soa como eu. Ha! Mas esse enigma, que eu me orgulho muito em manter, permanece, eu diria. O que é familiar é o seu desejo pela vida, sua curiosidade insaciável, sua energia, e sua natureza altamente sedutora.”

A comédia é outra grande característica do personagem. Quando Chris foi anunciado para o papel ele era associado a dramas realistas profundos, como Our Friends From The North, Cracker e Hillsborough. 

“Yeah”, ele responde. 

Discutivelmente, foi só recentemente com sua soberba atuação como o bem intencionado porém autodestrutivo Maurice em The A Word, escrito por Peter Bowker, na BBC One, que os telespectadores puderam apreciar seu talento para a comédia. Teria isso sido passado para a sua interpretação do Doutor hoje em dia?

“É uma armadilha para todos que interpretam um papel como esse – mas que está lá porque você está sempre tentando fornecer energia. Nestes áudios, o Doutor dirige a narrativa, ele traz a energia. Então às vezes você se sente um pouco inferior. 

“À medida que a minha carreira progredia eu entendi que… Por alguma razão, o brilhantismo da comédia não é tão valorizado quanto interpretar Hamlet. E eu acho que não faz sentido. Eu creio que, provavelmente, fazer comédia é muito mais difícil.”

Pode ser então que Chris veja a sua passagem pela Big Finish como uma oportunidade para recalibrar…? 

“Pode ser. Eu não pensei muito além. Mas possivelmente sim. Veremos, porque ainda estamos no meio das coisas. E ainda há um longo caminho à percorrer.”

Traduzido de: Doctor Who Magazine #563.

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